Tecnologia humanizada
Ana Paula Assis, presidente da IBM para a América Latina, fala sobre as parcerias de capacitação da IBM junto a agentes públicos, universidades e iniciativa privada
Ana Paula Assis, presidente da IBM para a América Latina, fala sobre as parcerias de capacitação da IBM junto a agentes públicos, universidades e iniciativa privada
Karina Balan Julio
6 de janeiro de 2020
O futuro do trabalho exigirá das empresas responsabilidade com o uso da tecnologia e comprometimento com a recapacitação da força de trabalho. “Empresas terão um papel protagonista em acelerar a capacitação, mesmo porque há áreas em que, se não participarmos do passo de aprendizagem, teremos impactos na evolução da tecnologia”, afirma Ana Paula Assis, presidente da IBM para a América Latina. A executiva personifica a versatilidade que é cada vez mais exigida de profissionais em vários setores, e por isso mesmo acredita que empresas e indivíduos tendem a ser mais plurais, combinando competências técnicas e humanas. Em entrevista ao Meio & Mensagem, ela falou sobre as parcerias de capacitação da IBM junto a agentes públicos, universidades e iniciativa privada, da estratégia de inclusão da companhia e dos dilemas éticos de se estar em uma das principais empresas de tecnologia do mundo.
Presidente da IBM para a América Latina desde julho de 2017, é formada em Ciências da Computação pela Universidade Federal de Goiás, com especialização em administração pela FGV e MBA pela Fundação Dom Cabral. Ingressou como estagiária na IBM em 1996, onde exerceu uma série de posições de liderança, como diretora para indústria de serviços financeiros na América Latina e vice-presidente de software no Brasil. Trabalhou também nas operações da empresa em Nova York e na China, onde foi vice-presidente de software. Integra o conselho da JA Americas, organização que prepara jovens para o mercado de trabalho.
Meio & Mensagem — Você está há quase 25 anos na IBM, veio de uma área técnica, a ciência da computação, e depois migrou para posições estratégicas. De que forma essa experiência múltipla contribui para o trabalho como líder da operação latinoamericana?
Ana Paula Assis — Tive uma formação muito técnica, mas minha primeira oportunidade já foi na área comercial e de vendas. Sou de Goiânia, comecei na IBM de lá e fui transferida para São Paulo. Desenvolvi uma carreira na área comercial muito focada na indústria financeira, tive vários clientes do setor bancário, operadoras de cartão de crédito e seguradoras dentro desse segmento. Quando fui para Nova York, tive a oportunidade de ver a companhia pela ótica do centro de decisão. Na volta, fui para a área de serviços, que na época passava por um processo de reestruturação grande. Estávamos começando a ver a indústria se movimentar de um modelo de infraestrutura de tecnologia dedicado para um modelo mais compartilhado e virtualizado. Depois, quis ir para a área de software, porque achava que o futuro da companhia realmente estaria ali. Naquele momento, a IBM fazia praticamente uma aquisição a cada mês. Fiquei nessa posição por mais ou menos quatro anos e surgiu a oportunidade de ir para a China, que estava deixando de ser um país copycat para se transformar em um país que realmente desenvolve tecnologia de ponta, e isso obviamente era uma oportunidade para nós. Ter passado por diversos mercados em diversas regiões me ajuda a ter um olhar multifacetado. Temos uma presença muito longeva na América Latina, é um mercado com potencial de crescimento e que adota tecnologia com uma velocidade muito grande, e isso torna a minha vida um pouco mais fácil.
M&M — Em que estágio está o Brasil no desenvolvimento de capital tecnológico? Quais tecnologias emergentes têm se mostrado mais aderentes ao nosso mercado?
Ana Paula — Vemos claramente um processo de adoção de soluções em nuvem nas empresas. Todas as indústrias estão passando por um processo forte de transformação digital e reinventando seus modelos de negócios. A América Latina e o Brasil, especificamente, não estão distantes do que acontece no resto do mundo, no sentido de que as empresas têm entendido que precisam olhar para dentro de seus processos e estruturas para fazer transformações muito profundas. Também há cada vez mais clareza da importância de ter um modelo de colaboração e inovação aberto, que permita trocar experiências e negócios em um ecossistema. Nunca vimos uma atividade tão intensa de fundos de venture capital e private equity vindo e retornando ao Brasil. Todos estão vendo a possibilidade de criação de ecossistemas de inovação, porque o País tem muitos problemas para resolver, assim como todos os países emergentes, e isso se apresenta realmente como uma grande oportunidade. Com tecnologia, você consegue resolver muitos problemas complexos de maneira mais eficiente.
M&M — Você é a primeira mulher a liderar a operação da IBM na América Latina, mesmo vinda de uma área onde a presença de homens ainda é maior, principalmente em cargos de liderança. Quais são as políticas de inclusão da IBM na área de tecnologia?
Ana Paula — A primeira política oficial de inclusão da IBM é de 1933. Desde a criação da IBM, um dos valores da empresa já era o respeito ao indivíduo e o olhar para as pessoas independentemente de raça, gênero ou credo. Mais recentemente, uma das coisas que procuramos fazer é criar formas de tornar o trabalho na operação mais flexível, especificamente olhando questões de gênero. Um dos momentos mais cruciais para as mulheres é quando voltam da licença-maternidade e questionam o equilíbrio entre sua vida pessoal e profissional, e, por isso, temos pensado em maneiras para tornar esse momento mais flexível para que elas possam se adaptar a essa nova vida. Também decidimos conceder a licença paternidade de 30 dias para os homens. Na parte de treinamento de mulheres, temos uma parceria com uma ONG, chamada Laboratória, que tem o objetivo de dar capacitação técnica às mulheres e fazer um mapeamento das profissionais do mercado. Temos também os grupos de diversidade para olhar as necessidades específicas de cada grupo, como para discutir questões LGBT, questões raciais e para pessoas com deficiência. Fizemos um trabalho muito bacana com a Specialisterne para trazer para dentro de casa o tema da neurodiversidade. Acabamos de contratar nossa primeira turma de pessoas com autismo, em Hortolândia: 20 pessoas que estamos trazendo para a área de TI para desenvolver tecnologia. No fundo, um dos grandes problemas que empresas têm que resolver é sobre como ter acesso a talentos. Para nós, a diversidade, além de todo o seu impacto social e moral, é uma questão de negócio. Temos um déficit enorme de recursos capacitados na indústria de tecnologia, e a projeção para 2020, segundo a consultoria IDC, é a de que teremos quase 600 mil posições de TI em aberto na América Latina. Não dá para resolver essa lacuna das formas tradicionais. Então, buscamos oportunidades de identificar e capacitar talentos para trabalhar conosco. Também treinamos os nossos times gerenciais para criar um ambiente onde as pessoas venham trabalhar sabendo que podem ser 100% elas mesmas, pois serão aceitas como são.
M&M — Uma das discussões sobre o futuro do trabalho gira em torno da automação e das novas habilidades que serão exigidas dos profissionais. Como vê o desafio da recapacitação da força de trabalho?
Ana Paula — Esse tema é interessante. Como estou há muito tempo nessa indústria, dá para fazer alguns paralelos com o passado. Quando o computador começou a chegar nas empresas, ninguém sabia trabalhar com ele e encontrar programadores era muito raro. Naquela época, fizemos um trabalho enorme de treinar pessoas, e as universidades também começaram a criar cadeiras de computação. A turma de Ciência da Computação na qual estudei foi a quarta turma da Universidade Federal de Goiás. Era uma disciplina muito nova e tivemos que criar todo esse conhecimento que não existia. Com o advento da Inteligência Artificial, tecnologias de automação e IoT, teremos que fazer a mesma coisa, recapacitar as pessoas, só que agora a diferença é maior. Os computadores antes ficavam numa sala isolada e só um conjunto de pessoas especializadas trabalhavam com eles. Hoje há uma simbiose completa entre tecnologia e negócios. Não focamos tanto em quais profissões vão deixar de existir ou surgir, mas no entendimento de que 100% das profissões serão modificadas pela tecnologia. Se você é um médico, um jornalista ou um profissional de marketing, vai ter que aprender como usar novas ferramentas como aliadas para desenvolver o seu trabalho. Todo mundo vai precisar se capacitar, em maior ou menor escala, e isso realmente passa por um desafio grande. Fizemos um estudo com a Universidade de Oxford e nossa projeção é de que mais ou menos 120 milhões de pessoas terão que ser retreinadas nos próximos três anos, nas doze maiores economias do mundo, por conta da inteligência artificial.
M&M — Como vê a responsabilidade das grandes empresas diante da necessidade de capacitação em massa?
Ana Paula — Você não pode esperar que o governo resolva essa questão sozinho, ou que a academia resolva o problema. Empresas vão ter um papel muito protagonista de acelerar esse processo de capacitação, mesmo porque há certas áreas em que, se não acelerarmos o passo de aprendizagem, vamos começar a ter impactos na própria evolução da tecnologia. Quando olhamos para cibersegurança, por exemplo, é uma área que neste momento tem um déficit de três milhões de profissionais no mundo inteiro. Não dá para pensar em avanços tecnológicos se não tivermos cibersegurança. Para que a gente tenha soluções de impacto, vai ter que ser através de vários agentes.
M&M — Como é a articulação da IBM com agentes externos, como governos e comunidade científica, por exemplo?
Ana Paula — Um dos exemplos mais práticos que a gente tem é um programa que se chama Pathways in Technology, ou P-Techs, que estamos desenvolvendo com as escolas públicas. Começamos na Colômbia, em Bogotá, com duas escolas, e hoje estamos com mais ou menos cinco escolas na América Latina. Atingimos 200 estudantes ao longo de 2019, e o plano para 2020 é chegar em 50 escolas e atingir mais ou menos 3,1 mil estudantes. É um modelo de ensino que olha competências técnicas, obviamente, mas também soft skills. Isso tem a ver com o contexto que estamos falando. Hoje, você ensina uma tecnologia e daqui a dois anos ela está obsoleta. Não posso capacitar uma pessoa em uma visão muito estreita, tenho que dar para ela competências para que busque novos conhecimentos depois. Isso tem a ver com soft skills de aprendizado contínuo, criatividade e capacidade de colaboração. As pessoas acham que essas habilidades não são treináveis, mas entendemos que são, através de mentoria e exemplos. Com esse programa, a gente conecta estudantes com mentores que estão no mundo profissional. Vamos ter que preparar profissionais de uma forma muito mais profunda e mais ampla do que fazemos hoje, e buscamos fazer isso direto na fonte, trabalhando com escolas e treinando professores. Capacitar uma pessoa em uma ferramenta tem valor, mas, no fundo, você está dando um conhecimento muito específico. O que queremos é dar autonomia para que as pessoas possam ser aprendizes a vida toda. É uma visão muito mais de longo prazo e mais profunda do que ensinar tecnologia A, B ou C. Aqui no Brasil, a nossa parceria é com o Centro Paula Souza, que cria muito bem essa conexão entre o poder público e privado. Também vamos construir com a Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) um centro de pesquisa para inteligência artificial. No mundo inteiro a IBM se conecta com universidades através de uma rede chamada IA Horizon Network, e o Brasil e a Índia são os únicos países emergentes que fazem parte dessa rede. A ideia é que a gente utilize esse novo centro de conhecimento para entender os impactos que a inteligência artificial terá na nossa economia e as ações que a gente deve tomar para evitar impactos negativos.
M&M — Muito se discute sobre o impacto de vieses inconscientes e questões éticas sobre a aplicação da tecnologia. Como vê a responsabilidade ética de empresas como a IBM?
Ana Paula — Esse é talvez um dos pontos de maior foco das nossas pesquisas ultimamente, o de trazer ética e responsabilidade para o uso de inteligência artificial. Temos princípios muito claros sobre IA, e nosso propósito é fazer com que a tecnologia atue para aumentar a capacidade humana, e não a substituí-la. Uma das nossas preocupações está na definição da propriedade do dado. Na nossa visão, os donos dos dados e insights com os quais lidamos são quem os gerou. A questão do data ownership é muito clara no nosso modelo de negócios, e temos uma preocupação muito grande com a proteção deles, de maneira que você não exponha indevidamente o dono das informações. Finalmente, nos preocupamos muito com como os dados estão sendo utilizados para treinar algoritmos, para garantir que as decisões tomadas por eles não sejam contaminadas por preconceitos. Nesse sentido, desenvolvemos soluções que analisam a base de dados usada para treinar os algoritmos e mapear seu processo de tomada de decisão. Assim, você pode identificar potenciais vieses ou preconceitos embutidos no processo de decisão da plataforma. Entendo que é com tecnologia, princípios e propósito que esses problemas podem ser resolvidos. A regulação da tecnologia é importante, mas ela não anda na mesma velocidade do desenvolvimento tecnológico. Temos que ter princípios bem definidos desde o início, porque, se depois houver algum problema e você quiser consertar lá na frente, já será tarde, pois as tecnologias escalam com uma velocidade muito rápida.
M&M — Empresas como IBM, Google, Amazon e Microsoft lideram o registro de patentes em tecnologias de ponta. Como vê esse movimento de concentração tecnológica nas mãos de poucas empresas?
Ana Paula — Teremos uma combinação de empresas muito interessante e muito rica. Se olharmos a história das corporações, não só de tecnologia, vemos que realmente houve momentos em que as empresas que conseguiram criar um ecossistema mais forte foram aquelas que dominam um segmento. O que acho interessante no momento que estamos vivendo é que, se por um lado a gente tem grandes fornecedores de serviços de tecnologia, por outro nunca tínhamos visto uma proliferação tão grande de pequenas empresas e startups trazendo novas soluções e modelos de negócio. A tecnologia está permitindo que você crie um negócio muito rapidamente, com pouco investimento. As barreiras de entrada para criar um novo negócio tendem a ficar muito pequenas com o uso de tecnologia e com a possibilidade de você criar um ecossistema, como vimos com a economia compartilhada. Existe um saldo muito positivo na maneira como os negócios se configuram hoje.